*cronica do livro papo de garotas*
Clarinha estava sentada na
sala, aos 13 anos de ida¬de, prisioneira em sua própria casa. Como se
não bas¬tasse, fora proibida de ligar a tevê, de mexer no jornal e até
de brincar com seus amigos e vizinhos.
— Seu pai está passando por um momento bastan¬te difícil. Você tem que ter paciência — explicou sua mãe.
— Mas eu não gosto de ir pra escola com aqueles dois seguranças. Fica todo mundo me olhando.
— É necessário.
— O Pedro disse que meu pai é ladrão.
— São problemas da política, minha filha — a mãe deu um suspiro e se levantou, perguntando — "Você não tem lição de casa?"
— Tenho que fazer uma redação — e tratou de pegar rapidinho, na mochila, os livros e cadernos.
Clarinha
não era boba, sabia que sua mãe não esta¬va para conversa. Seu pai,
então, nem o via. Saía cedo e voltava tarde da noite. Na madrugada
anterior, tinha acor¬dado com os dois brigando. Levantou-se da cama de
mansinho, abriu uma fresta da porta e foi então que viu seu pai, cie
pijamas, saindo pelo corredor. Estava tão diferente, cabisbaixo, com uma
expressão pesada no rosto. Nem parecia aquele homem grande, elegante,
que três anos atrás fora considerado o herói da cidade. Pro¬pagandas,
debates na televisão, homem de fibra. Nin¬guém duvidaria da sua
integridade. Era a primeira vez que se envolvia na política e já ganhara
as eleições.
No começo, tudo maravilhoso, gente importante
fre¬qüentando a sua casa, muitos jantares, eventos... Clarinha era ainda
muito pequena para participar de tudo aquilo, mas, entre seus amigos,
ser a "filha do Prefeito" era um título e tanto.
No segundo ano, entretanto, começou a ouvir um papo estranho entre os pais.
— Ah, cansei de te pedir: "Não se meta na política, é só sujeira".
— Eu queria ajudar, fazer alguma coisa pela cida¬de. Se pelo menos eu soubesse que era tão difícil...
— Ninguém nesse país pode com essa corrupção. Ou a gente entra na dança, ou não consegue fazer nada.
E, nos últimos meses, deu no que deu, todos esta¬vam contra eles.
Clarinha
pegou o caderno de português e abriu na última página: "Um político no
poder". Era o título da redação. Sim, parecia que até a professora, os
alunos..., a escola inteira estava contra eles! Teve vontade de gritar,
chorar, espernear. Rasgar aquele caderno inteirinho e nunca mais pisar
na sala de aula. Mas não ia baixar a cabeça; pegou um lápis e escreveu:
Sou
um ser vivo, mas não sei se sou humano. Sou grande por fora, mas
pequeno por dentro. Sou rico de dinheiro, mas pobre de espírito. Tenho
fartura, mas sou carente. Sou visto por todos, mas compreendido por
nin¬guém. Dizem que falo, mas o que faço é me calar. Gero infelicidade,
mas também sou feliz. Falo por todos, mas não sei expressar minha
vontade. Cheguei lã, mas não sei se estou satisfeito. Queria mudar tudo,
mas quem mudou fui eu, posso ver e ouvir, mas preferia ser cego e mudo.
Sou um e falo por milhões. Me sinto tão sujo, mesquinho e baixo que
preferia nem existir.
Um político no poder
E, no dia seguinte,
entregou o texto à professora, uma cidadã comum, cansada e enojada com a
situação do país. Uma pessoa que, como tantas outras, se sentia
totalmente impotente diante de tamanho caos e sujeira que desde o
descobrimento tem sido a política brasi¬leira. Mas, ao ler as palavras
da menina, teve, por um momento, uma grande esperança. Quem sabe, em
bre¬ve a geração de Clarinha pudesse vir a fazer alguma coisa.
«Retalhos de uma Vida são pequenas peças de uma vida igual a tantas outras que se vão juntando de modo a dar uma forma definida a essa vida. Coisas simples e banais que se vão juntando quais retalhos, dando origem a uma vida simples e desinteressante que é a minha, qual manta de retalhos, construida de sentimentos, experiências e vivências que são cada um dos retalhos aqui expostos.»
Quem sou eu
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